segunda-feira, 28 de março de 2011

Sobre o conto- Menalton Braff

Quem conta um conto?


Para o senso comum, um conto é uma história curta, mas o conhecimento apenas empírico da matéria não passa muito perto do alvo. Edgar Allan Poe, Júlio Cortázar e outros clássicos do gênero produziram uma série bastante grande de definições que, cada uma a seu modo, estão corretas. Para Poe, o que caracteriza um conto é sua extensão. Claro que se trata de narrativa curta. Para Cortázar, o conto é como uma luta de boxe: a primeira frase já deve ser um jabe que nocauteie o leitor. Foi Tchekov, outro clássico do gênero, quem disse que, se no início do conto aparecer uma espingarda pendurada na parede, até o fim do conto ela deve ser disparada.
De lado as definições desses clássicos, trilhemos caminhos mais simples.
O conto é um gênero narrativo em prosa, com economia de elementos, unidade de ação, em que todos os recursos levem a um efeito, que Poe chamou de efeito pretendido. Em geral, pensa-se que uma boa história curta tem como resultado um bom conto. Não é bem assim.
Uma boa história curta pode ser contada num filme, numa HQ, num poema e nada disso é conto, pois falta-lhes o que é específico à literatura: a construção de determinado discurso.
O conto, como hoje o entendemos, é uma orquestração de linguagem em que nada esteja sobrando, diferentemente do romance, em que nada deverá faltar. Ideia que já encontrei alhures. Seja de que tipo for (conto de personagem, de enredo, de atmosfera, de qualquer gênero, segundo classificação defendida pelo Nélson de Oliveira, conto policial, de terror, fantástico etc), o conto exige uma linguagem especial, em que se empreguem os recursos especificamente literários. Não é o simples contar uma história que se pode chamar de conto. Ele exige uma tensão interna da linguagem com os elementos da narrativa, como narrador, personagem, ação, tempo e espaço.
Quanto ao uso da linguagem, existem dois modos distintos em que a literatura vem pendulando através dos séculos. O modo apolíneo, claro, em que tudo deve ser dito com um mínimo de palavras, como o texto abaixo, do livro Insônia, de Graciliano Ramos:
Quando tio Severino voltou da fazenda, trouxe para Luciana um periquito. Não era um cara-suja ordinário, de uma cor só pequenino e mudo. Era um periquito grande, com manchas amarelas, andava torto, inchado, e fazia: ‒ “Eh! Eh!”
Trata-se do parágrafo inicial do conto Minsk, um parágrafo descritivo da personagem principal: Minsk. Observe-se que com duas pinceladas o narrador nos fornece inteiro o personagem principal.
O outro modo é o dionisíaco, em que se pode sentir a volúpia das palavras, pouco importando se há ou não clareza.
Observem-se os dois parágrafos iniciais do conto O burrinho pedrês, do livro Sagarana, de Guimarães Rosa. Como no exemplo precedente, o narrador vai apresentar seu personagem principal.
Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.
Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria preciso abaixar-lhe a maxila teimosa, para espiar os cantos dos dentes. Era decrépito mesmo a distância: no algodão bruto do pêlo ‒ sementinhas escuras em rama rala e encardida; nos olhos remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, em constante semi-sono; e na linha, fatigada e respeitável ‒ uma horizontal perfeita, do começo da testa à raiz da cauda em pêndulo amplo, para cá, para lá, tangendo as moscas.
Alguns aspectos desses fragmentos são comuns aos dois. Primeiro, ambos os textos são parágrafos iniciais de contos em que se começa pela apresentação da personagem, sua descrição. Segundo, nos dois textos houve um trabalho de linguagem que foge ao emprego comum e pragmático de seu uso. Os modos são diversos, mas a preocupação com a linguagem está nos dois casos. E terceiro, cada um dos detalhes da descrição da personagem é funcional. Nada nos textos acima é puro ornamento. A descrição é feita tendo em vista o que o Poe chamou de “efeito pretendido”.
São dois exemplos extremos e não somos maniqueístas. Entre os dois medeiam modos os mais diversos de se arranjar a linguagem, sem que nenhum deles seja absoluto ou anule os demais.
Por fim, entre a folga do romance e a tensão cerrada da poesia, está o conto, com suas particularidades como forma narrativa.

Menalton Braff

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