Em delicioso texto, nossa colega Áurea Laguna fala sobre Zoraide Rocha de Freitas, uma das personalidades citadas na ata histórica sobre a fundação do Núcleo da UBE .
Parabéns, Áurea e obrigada por estar sempre presente e participante.
Memórias Afetivas de ‘Tia Zoraide’
Tal qual o narrador da obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido que após
mergulhar os biscoitos madeleines na
chávena de chá, ofertada por sua mãe, recordara-se por meio da memória
involuntária de uma mesma sensação vivenciada em situação semelhante na
infância em Combray, na casa de sua tia Léonie, tento refazer o caminho
inverso, usando a memória voluntária.
Vou até a cozinha, sirvo-me de um pedaço de bolo de fubá e
começo a relembrar e a escrever, motivada ainda mais pelo cheiro e sabor dessa
iguaria, sobre os primeiros encontros que tivemos com Zoraide Rocha de Freitas.
Viemos para Ribeirão Preto em 1963. Meu pai, Lincoln de Assis
Moura, acabara de se aposentar em São Paulo no cargo de juiz de Direito da 6ª
vara da família. Minha mãe, Naïr Pimentel de Assis Moura, formara-se, quando
jovem, na Escola Normal Caetano de Campos em São Paulo e obtivera a sua primeira
cadeira na cidade de Casa Branca. Não tínhamos parentes aqui, uma vez que o meu
avô paterno, Mário de Assis Moura, advogado, professor de geografia no ginásio
do estado Otoniel Mota e escritor de livros de Direito, publicados pela Editora
Saraiva, já havia falecido há muito tempo.
Sempre que podíamos, frequentávamos a casa da ‘tia Zoraide’,
como ela gostava de ser chamada, pois fora uma grande amiga da família Assis
Moura, que morara na rua Prudente de Moraes, quase esquina com a Visconde de
Inhaúma.
Lembro-me que, em uma ocasião, uma das minhas irmãs, residente em São Paulo,
veio a Ribeirão Preto e a levamos para conhecer a nossa ‘nova amiga’. A ‘tia
Zoraide’ levou um grande susto, pelo fato de a Marga parecer-se muito com a
nossa avó paterna, Virgínia, falecida na década de 1930.
A dona Mariquinha, matriarca do clã Rocha Freitas, nos levava para a cozinha,
oferecendo sempre os seus bolos de fubá. Era uma velhinha animada, que nos
olhava com seus olhinhos azuis, tentando ouvir a conversa dos meus pais na
sala, ao mesmo tempo em que queria nos agradar.
Morando em um sobrado na rua Visconde de Inhaúma, entre as ruas Prudente de
Moraes e Lafaiete, no lado direito de quem sobe para a Avenida Nove de Julho,
elas guardavam muitos livros em sua estantes. ‘Tia Zoraide’ era professora de
língua portuguesa e se formara na Escola Normal de Casa Branca. Dominava vários
idiomas e dedicava-se ao estudo da Grafologia e do Esperanto. Acreditava que
essa língua seria a mais falada no futuro e tentava nos dar algumas explicações
sobre a sua formação.
Exigente com o uso correto da nossa língua, gostava de narrar passagens do seu dia a dia na sala de
aula. Certa vez, um aluno lhe dissera que estava com muita dó de alguém. Ela
foi até à lousa e fez uma figura masculina, colocando-lhe uma saia, chamando-o
de DÓ, com lágrimas em seus olhos. Disse que o DÓ estava chorando porque o
estavam tratando como se fosse uma mulher.
Em um outro momento, contou que as pessoas sempre confundiam o uso do há, do verbo haver com a vogal a. Era
para nos lembrarmos de que quando citávamos um fato acontecido, o a precisava de uma cadeirinha (h) porque
estava cansado. Ex: Foi há muito tempo que eu nasci. No futuro, era para
usarmos somente o a como preposição, pois ele era novinho e não precisava da
cadeira. Ex: Daqui a três anos, estarei formada.
‘Tia Zoraide’ nasceu no dia 13 de fevereiro
de 1898. Formou-se na Escola Normal de Casa Branca e foi diretora da primeira
escola industrial fundada em São Paulo, para as mulheres, em 1911, no bairro do
Brás. Escreveu: A chave da análise
sintática em 1925 e A História do Ensino Profissional no Brasil
em 1954.
Meus pais nasceram em 1909 e mesmo sendo
onze anos mais velha, ela poderia ter recordações do passado em Ribeirão Preto
para compartilhar com meu pai e lembranças de pessoas conhecidas de minha mãe
na cidade de Casa Branca.
A última vez em que a vi foi na década de
1990, quando ela me chamou para avaliar muitos de seus livros, pois estava de
mudança para São Paulo e não poderia levar todos consigo. Naquela época, corri
a telefonar para a minha mãe, que já havia voltado para a capital para lhe
contar a novidade. Não me recordo se elas se encontraram. Soube apenas que a
“Tia Zoraide” morreu com mais de cem anos, trabalhando sempre em prol da
educação brasileira e do ensino da nossa língua portuguesa.
Áurea Laguna
Membro da UBE – Ribeirão Preto
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