segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Rita Mourão e seu texto publicado na Antologia

     Texto de Rita MOurão que figura na Antologia da UBE

                         


 IMAGENS QUE  FICAM


                                                                       Rita Mourão

                                                   

Confesso que sou meio nostálgica. Vivo a escarafunchar o baú das minhas lembranças, sem contudo, me deixar prender ao passado. A vida deve ser vivida cada minuto, sem pressa. Procuro vivê-la assim, com a consciência apegada aos menores acontecimentos, para que mais tarde eu não venha sentir na pele os espinhos do remorso.
Hoje, bem no fundo dos meus guardados, encontrei uma mulher que marcou para sempre meu jeito de viver. Nunca mais deixo para depois o que posso fazer agora. O depois é uma palavra que apazigua, mas pode se transformar em um dolorido nunca mais.
Era essa mulher, uma pessoa iluminada! Mãe extremosa, forte, exemplar. Seu nome era Matilde, mas, naquele recanto mineiro em que vivia, todos a conheciam como dona Tide.
Passou a vida ali, cuidando do sítio e dos quatro filhos que lhe deixou o marido.
“Dona Tide é uma mulherzinha forte” – diziam os sitiantes que vizinhavam com ela, presenciavam a sua luta e conheciam a sua história. “Qualquer outra se queixaria, mas dona Tide, não. É conformada, resistente. Uma árvore boa, madeira de lei que não se curva diante dos vendavais”.   Tinha um olhar distante procurando (quem sabe) entender o passado e conformar-se com o presente. Acreditava firme que, se não houvesse curvas no caminho, não existiriam surpresas boas.
Quando seu homem foi-se embora com a loira do povoado, ela ignorou o fato, nunca falou a ninguém sobre seus desencantos, suas preocupações. E não se acomodou diante da dura lida. Cuidava sozinha dos afazeres do sítio, das poucas vacas leiteiras e, ainda fazia doces, biscoitinhos de nata e muitas outras guloseimas que iam para venda do seu Justino.
“Tenho que trabalhar dobrado e dar aos meus filhos um pouco mais de estudo. Eles serão melhores do que eu” – dizia cheia de esperança. Como se no mundo pudesse haver alguém melhor do que a dona Tide. Mas ela se referia ao duro trabalho que lhe pesava o corpo, às duras frustrações que lhe arranhavam a alma, guardando só para si o cansaço e as dores que a ingratidão provocara.
Os anos foram passando e tudo foi fugindo do seu controle, do seu alcance. E uma lembrança doce foi ocupando o velho espaço de um tempo de sonhos, semeaduras. As imagens dos filhos pequenos, porém, continuavam vivas, tagarelando dentro dela. Eles haviam crescido e foram para a cidade grande aperfeiçoar o estudo, melhorar a vida. O último a se despedir foi Cláudio, o filho caçula. Ah, como doeu em dona Tide essa despedida! Ela sabia que acabava de perder o último carinho que lhe restara, o último companheiro para o café da manhã e para as conversas, à noite, ao pé do fogão à lenha. Mais uma vez, dona Tide engoliu seco aquela dor e guardou-a só para si. Resignada, continuou dizendo que eram separações necessárias. A vida exigia isso.
No começo, em datas especiais, os filhos apareciam. Então era aquela festa. Nessas ocasiões o trabalho era redobrado. Fazia doces e mais doces, punha flores na jarra e ajeitava até a própria aparência. Tinha que se mostrar elegante, para as noras, para os filhos e netos. O cansaço? A chegada dos seus meninos, alegria da família reunida vencia tudo.  Depois as visitas foram ficando raras, as saudades mais intensas. Dentro de dona Tide chegava a doer de tanta saudade, mas só ela sabia da existência dessa dor. E os vizinhos diziam: “Ingratos, será que se esqueceram da mãe? Qualquer dia ela morre e eles nem vão ficar sabendo”. E dona Tide, de cabeça erguida, nos lábios um sorriso que só ela sabia o quanto lhe custava, sempre encontrava meios para justificar a ausência dos filhos. “Eles me amam, eu sei disso. Filhos são como pombos-correio. Vão, às vezes demoram, mas sempre voltam trazendo um ramo verde para nos ofertar”.
Naquela tarde de dezembro, dona Tide não cabia em si de tanta felicidade. Depois de muito tempo sem dar notícias, os filhos mandaram lhe dizer que viriam passar o Natal com ela. Logo que recebeu o telegrama, dona Tide trabalhou, trabalhou que até a semana lhe pareceu mais curta. Encheu os potes de doces, biscoitinhos de nata e de tudo o que pudesse agradar o apetite dos seus “meninos”. Caprichou nos arranjos da casa e até a talha em que mantinha a água sempre fresquinha recebera cuidados especiais. Era uma velha talha impregnada de passado, mas ficara bem mais bonita depois daquele banho com sapólio. Embora sentisse que o trabalho mexera com seus oitenta e cinco anos, dona Tide estava feliz, realizada. “Tudo preparado, no capricho, agora é só esperar– disse-me quando cheguei para  cumprimentá-la.
Tinha tomado um banho reconfortante, usava uma roupa florida e sentada na frente da antiga casinha de pau a pique, dona Tide estava pronta para abraçar os filhos que não tardariam. Tudo nela era só alegria. O sorriso solto, as vestes coloridas, o diadema dourado sobre os cabelos grisalhos. Da cozinha, o cheiro das carnes e dos quitutes se espalhava pelos arredores do enorme terreiro.
Dentro do que eu conhecia de Dona Tide pude ver que ela  contemplava o pôr do sol mais bonito que já vira, um  pôr do sol diferente, com cores de esperança.
Com os olhos fixos no horizonte e a respiração meio ofegante, ela aguardava o momento daquele esperado reencontro.  Lá longe, na curva da estrada, uma tira de poeira vermelha anunciou a surpresa há muito  desejada.  As buzinas dos carros repicaram e um cansaço pegajoso, um burburinho confuso foi se apossando de todos os sentidos de dona Tide. Mesmo pesados e sonolentos, os olhos dela ainda vislumbraram os carros e os acenos dos filhos, das noras, dos netos. Aos poucos, as imagens foram se desintegrando daquelas retinas cansadas e foram se transformando em um sonho grande, seguido por um sono profundo, embalados pela tagarelice dos seus meninos.

Quando chamaram por ela, dona Tide não quis mais acordar. Teve medo de perder aquele sonho, aquela felicidade sublime e ficar de novo sem os filhos queridos.

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