Texto de Rita MOurão que figura na Antologia da UBE
IMAGENS QUE FICAM
Rita
Mourão
Confesso
que sou meio nostálgica. Vivo a escarafunchar o baú das minhas lembranças, sem
contudo, me deixar prender ao passado. A vida deve ser vivida cada minuto, sem
pressa. Procuro vivê-la assim, com a consciência apegada aos menores
acontecimentos, para que mais tarde eu não venha sentir na pele os espinhos do
remorso.
Hoje,
bem no fundo dos meus guardados, encontrei uma mulher que marcou para sempre
meu jeito de viver. Nunca mais deixo para depois o que posso fazer agora. O
depois é uma palavra que apazigua, mas pode se transformar em um dolorido nunca
mais.
Era
essa mulher, uma pessoa iluminada! Mãe extremosa, forte, exemplar. Seu nome era
Matilde, mas, naquele recanto mineiro em que vivia, todos a conheciam como dona
Tide.
Passou
a vida ali, cuidando do sítio e dos quatro filhos que lhe deixou o marido.
“Dona
Tide é uma mulherzinha forte” – diziam os sitiantes que vizinhavam com ela,
presenciavam a sua luta e conheciam a sua história. “Qualquer outra se queixaria,
mas dona Tide, não. É conformada, resistente. Uma árvore boa, madeira de lei
que não se curva diante dos vendavais”. Tinha um olhar distante procurando (quem
sabe) entender o passado e conformar-se com o presente. Acreditava firme que,
se não houvesse curvas no caminho, não existiriam surpresas boas.
Quando
seu homem foi-se embora com a loira do povoado, ela ignorou o fato, nunca falou
a ninguém sobre seus desencantos, suas preocupações. E não se acomodou diante
da dura lida. Cuidava sozinha dos afazeres do sítio, das poucas vacas leiteiras
e, ainda fazia doces, biscoitinhos de nata e muitas outras guloseimas que iam
para venda do seu Justino.
“Tenho
que trabalhar dobrado e dar aos meus filhos um pouco mais de estudo. Eles serão
melhores do que eu” – dizia cheia de esperança. Como se no mundo pudesse haver
alguém melhor do que a dona Tide. Mas ela se referia ao duro trabalho que lhe
pesava o corpo, às duras frustrações que lhe arranhavam a alma, guardando só para
si o cansaço e as dores que a ingratidão provocara.
Os
anos foram passando e tudo foi fugindo do seu controle, do seu alcance. E uma
lembrança doce foi ocupando o velho espaço de um tempo de sonhos, semeaduras.
As imagens dos filhos pequenos, porém, continuavam vivas, tagarelando dentro
dela. Eles haviam crescido e foram para a cidade grande aperfeiçoar o estudo,
melhorar a vida. O último a se despedir foi Cláudio, o filho caçula. Ah, como
doeu em dona Tide
essa despedida! Ela sabia que acabava de perder o último carinho que lhe
restara, o último companheiro para o café da manhã e para as conversas, à
noite, ao pé do fogão à lenha. Mais uma vez, dona Tide engoliu seco aquela dor
e guardou-a só para si. Resignada, continuou dizendo que eram separações
necessárias. A vida exigia isso.
No
começo, em datas especiais, os filhos apareciam. Então era aquela festa. Nessas
ocasiões o trabalho era redobrado. Fazia doces e mais doces, punha flores na
jarra e ajeitava até a própria aparência. Tinha que se mostrar elegante, para
as noras, para os filhos e netos. O cansaço? A chegada dos seus meninos,
alegria da família reunida vencia tudo.
Depois as visitas foram ficando raras, as saudades mais intensas. Dentro
de dona Tide chegava a doer de tanta saudade, mas só ela sabia da existência
dessa dor. E os vizinhos diziam: “Ingratos, será que se esqueceram da mãe?
Qualquer dia ela morre e eles nem vão ficar sabendo”. E dona Tide, de cabeça
erguida, nos lábios um sorriso que só ela sabia o quanto lhe custava, sempre
encontrava meios para justificar a ausência dos filhos. “Eles me amam, eu sei
disso. Filhos são como pombos-correio. Vão, às vezes demoram, mas sempre voltam
trazendo um ramo verde para nos ofertar”.
Naquela
tarde de dezembro, dona Tide não cabia em si de tanta felicidade. Depois de
muito tempo sem dar notícias, os filhos mandaram lhe dizer que viriam passar o
Natal com ela. Logo que recebeu o telegrama, dona Tide trabalhou, trabalhou que
até a semana lhe pareceu mais curta. Encheu os potes de doces, biscoitinhos de
nata e de tudo o que pudesse agradar o apetite dos seus “meninos”. Caprichou
nos arranjos da casa e até a talha em que mantinha a água sempre fresquinha
recebera cuidados especiais. Era uma velha talha impregnada de passado, mas
ficara bem mais bonita depois daquele banho com sapólio. Embora sentisse que o
trabalho mexera com seus oitenta e cinco anos, dona Tide estava feliz,
realizada. “Tudo preparado, no capricho, agora é só esperar– disse-me quando
cheguei para cumprimentá-la.
Tinha
tomado um banho reconfortante, usava uma roupa florida e sentada na frente da
antiga casinha de pau a pique, dona Tide estava pronta para abraçar os filhos
que não tardariam. Tudo nela era só alegria. O sorriso solto, as vestes
coloridas, o diadema dourado sobre os cabelos grisalhos. Da cozinha, o cheiro
das carnes e dos quitutes se espalhava pelos arredores do enorme terreiro.
Dentro
do que eu conhecia de Dona Tide pude ver que ela contemplava o pôr do sol mais bonito que já
vira, um pôr do sol diferente, com cores
de esperança.
Com
os olhos fixos no horizonte e a respiração meio ofegante, ela aguardava o
momento daquele esperado reencontro. Lá
longe, na curva da estrada, uma tira de poeira vermelha anunciou a surpresa há
muito desejada. As buzinas dos carros repicaram e um cansaço
pegajoso, um burburinho confuso foi se apossando de todos os sentidos de dona
Tide. Mesmo pesados e sonolentos, os olhos dela ainda vislumbraram os carros e
os acenos dos filhos, das noras, dos netos. Aos poucos, as imagens foram se
desintegrando daquelas retinas cansadas e foram se transformando em um sonho
grande, seguido por um sono profundo, embalados pela tagarelice dos seus
meninos.
Quando
chamaram por ela, dona Tide não quis mais acordar. Teve medo de perder aquele
sonho, aquela felicidade sublime e ficar de novo sem os filhos queridos.
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