Contra a censura
Cláudio Willer, diretor da UBE, manifesta-se contra censura a dicionários e na rede social
07.03.2012
Decidi retomar em meu blog o devido tratamento dessa espantosa censura a dicionários, tal como noticiado em matéria publicada no jornal Gazeta do Povo, edição de 27 de fevereiro de 2012, dando conta de que o Ministério Público Federal quer tirar de circulação o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Para isso entrou com ação junto à Justiça Federal em Uberlândia, Minas Gerais, alegando que o dicionário contém expressões "pejorativas e preconceituosas". (A íntegra da notícia pode ser acessa por este endereço eletrônico: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=1227792&tit=MPF-quer-tirar-de-circulacao-o-dicionario-Houaiss)
Fico sabendo que todas as editoras patrulhadas estão cedendo à pressão, suprimindo trechos dos dicionários: http://www.publishnews.com.br/telas/noticias/detalhes.aspx?id=67279
Isso só tem um nome: expurgo. Abre um precedente perigoso. Autores dos verbetes deviam reclamar: direitos morais, á integridade do que fizeram, continuam valendo. Onde estão as entidades científicas, de estudiosos da linguagem, diante de uma aberração dessas?
Não uso o verbo ‘denegrir’. Prefiro ‘maltratar’ a ‘judiar’. Denegrir e judiar são expressões racistas. Aliás, como assim, ‘racistas’? Preconceituosas, ofensivas, discriminatórias – racistas, não, posto que, comprovadamente, não existe ‘raça’, entre os humanos – só povos, etnias, comunidades.
Atenção, policiais do vocabulário: pra fora do dicionário, todas essas expressões incorretas – e muitas outras.
A redução ao absurdo é para mostrar aonde pode levar o precedente.
Um certo Roland Barthes, se ainda vivo, observaria que toda linguagem é assim: discrimina, hierarquiza, ao tentar ordenar um fluxo caótico. Outros diriam que a intervenção nos verbetes confunde a parte (o signo) e o todo (o significado, o ‘real’). Ou que essas intervenções são restritas à superestrutura.
Protagonistas da polêmica medieval dos realistas vs. nominalistas tinham mais nível do que essa gente que se empenha em alterar dicionários.
Poetas, criadores literários, ampliam o uso das palavras. Burocratas, censores, tentam reduzi-lo. O resultado de seu empenho seria, se bem sucedido (jamais será) distópico: um mundo como aquele do 1984 de Orwell.
É preciso reagir. Frear mais esse avanço do absurdo.
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Já havia observado que gostei de associar-me ao Facebook. Abro a página inicial, vejo postagens de poesia de qualidade, imagens, vídeos, áudios. Obviamente, de entremeio a muita coisa que interessa menos. E que ignoro, abstraio. Além disso, o Facebook funciona como serviço: posso divulgar publicações e apresentações, poupando-me de enviar séries de e-mails, que por sua vez me dispensavam de enviar convites pelo correio. E sou achado por leitores … !
Contudo, a existência de censura introduz um desagradável ruído na funcionalidade da rede social. Tratei disso em postagem anterior, http://claudiowiller.wordpress.com/2012/02/25/contra-a-censura-sempre/ , a propósito das imagens dos poetas beat Allen Ginsberg e Peter Orlowsky posando nus, postadas por Rubens Zárate e suprimidas pelo Facebook. Combinamos – por sugestão de Claudio Daniel, Elizabeth Lorenzotti, Máh Luporini e outros colegas – um bombardeio de imagens de nudez e afins, culminando com algo em maior escala a 12 de março, transformado em efeméride contra a censura.
A consequência, por enquanto, foi a retirada pelo Facebook de reproduções de quadros do surrealista belga Paul Delvaux, postadas por Máh Luporini; fotos de nus artísticos, inclusive a consagrada foto de Yoko e John Lennon, por Paula Freitas; outras imagens postadas por Célia Musili; um soneto de Bocage… Isso, e bloqueios temporários das respectivas páginas com advertências de violação dos ‘padrões da “comunidade” do Facebook’, tal como expostos em https://www.facebook.com/communitystandards/ . Para efetuar tal controle, o Facebook emprega “moderadores de conteúdo”, como relatado em http://www1.folha.uol.com.br/tec/1050141-funcionario-revela-cartilha-para-censores-do-facebook.shtml
É censura. Que, nos casos aqui registrados, colide com a legislação brasileira, a começar pela Constituição:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e a propriedade, nos termos seguintes:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença
Art. 220º A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Como o Facebook está atuando no Brasil, deve ser enquadrado.
Além disso, as práticas do Facebook são desrespeitosas, ofensivas. Devemos nos recusar a ser tutelados, tratados como incapazes ou algo assim. E subordinar a legislação brasileira aos estatutos de uma corporação multinacional é, evidentemente, intervenção colonialista.
Quando Howl and other poems (Uivo e outros poemas) de Ginsberg foi retirado de circulação, a defesa da obra e de seu editor foi, vitoriosamente, assumida, em um caso que marcou época, por uma entidade, a “American Civil Liberties Union”.
A presente mensagem tem características de garrafa jogada ao mar, com a expectativa de encontrar juristas ou entidades que se disponham a fazer isso (há representação ou sucursal brasileira do Facebook? ou o foro teria que ser lá fora?).
Algumas observações adicionais:
Há precedentes. O episódio da exibição de L’origine du monde (A origem do mundo) de Gustave Courbet, mostrando o que vem antes do ventre de uma mulher, garantida na justiça por um usuário francês e desde então circulando livremente. Para ilustrar como algumas mudanças são lentas: entre a criação desse quadro, de 1866, e sua exposição pública no Musée d’Orsai em Paris, em 1995, passaram-se 129 anos…
Aderir ao Facebook, serviço gratuito, não implicaria aceitar seus termos? Não: sua utilização é fonte de renda, de faturamento em publicidade, determinando o multibilionário valor da rede social. Adesão é um contrato; e contrato algum pode alterar leis ou sobrepor-se a elas. O Facebook só poderia cercear aquelas manifestações expressamente vedadas pela legislação brasileira – felizmente bem liberal, vide a jurisprudência já formada em torno dos debates sobre o uso de “drogas”.
Meios de comunicação, jornais, revistas, emissoras, fazem isso, filtram, selecionam o tempo todo, argumentam alguns. Há diferenças, porém. Nenhum desses veículos se apresenta como sendo comunitário. Neles, o espaço é limitado, justificando seleção e editorialização. Nas redes sociais e ferramentas de busca, o espaço é infinito. Sua utilização e alimentação de conteúdos cabe ao usuário, não à empresa mantenedora (diretamente, nas redes sociais; indiretamente nas ferramentas de busca, que exibem páginas de terceiros). Se não fosse assim, poucos adeririam.
Usuários teriam, em princípio, o direito de não querer ver páginas com fotos de Allen Ginsberg ou quadros de Paul Delvaux. Sim – e podem exercer esse direito, apagando-as de suas páginas e até bloqueando remetentes. Filtragem pessoal não é censura, evidentemente. Na minha casa e nas minhas páginas entra o que eu quiser.
O bombardeio de imagens de nudez e afins está produzindo resultados. A censura do Facebook se tornou errática, confusa (páginas mantidas por mulheres estariam sendo objeto preferencial de intervenção? nas minhas postagens, ninguém mexeu ainda). Com a proliferação dessas postagens, irá tornar-se onerosa; obrigará à contratação de exércitos de censores. Somada à possível intervenção pela via judicial e à multiplicação do escândalo (que certamente repercutirá na imprensa), obrigará o Facebook a ceder.
Avanços na liberdade de expressão são conquistados assim: palmo a palmo.
Nesse momento, há dois grandes temas em debate, relativos ao meio digital. Um, a censura em redes sociais. Outro, as “políticas de privacidade” das ferramentas de busca, provedores de conteúdo e redes sociais. Quanto a esse assunto, se quiserem montar um “perfil” a partir de meus acessos e buscas, para comercializá-lo, então quero comissão… Chamarem a utilização comercial de informações pessoais de “política de privacidade” é, evidentemente, linguagem orwelliana.
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